24/12/2018

Adriana Calcanhotto tem obra desconstruída

Com título extraído do verso inicial de Mentiras (1992), balada que há 26 anos projetou o cancioneiro autoral de Adriana Calcanhotto, o disco Nada ficou no lugar (Xirê / Sony Music) já explicita a intenção de desconstruir a obra dessa compositora gaúcha revelada na virada dos anos 1980 para os 1990.

No caso, a intenção é salutar, pois, pela própria natureza antropofágica da obra que vem construindo desde então, a artista sempre rejeitou acomodações, embutindo tanto referências modernistas como alusões ao pop radiofônico de tom sentimental em cancioneiro singular que há tempos consolidou Calcanhotto como herdeira natural das liberdades tropicalistas.

Projeto produzido com curadoria de Andrea Franco e DJ Zé Pedro, Nada ficou no lugar totaliza 18 releituras de músicas de Calcanhotto. As seis primeiras foram lançadas no dia 21 de dezembro, em três singles duplos (outras seis serão reveladas em 18 de janeiro e as seis restantes sairão em 15 de fevereiro de 2019).

Quase nada ficou no lugar, e isso é bom sinal de que nenhum dos artistas fez cover como se fosse cantor de barzinho, mas nem todo mundo pôs algo relevante no lugar do que foi desconstruído.

Louve-se o surpreendente acerto de Ava Rocha, cantora carioca que encarou a difícil missão de dar voz a Âmbar (1996), canção feita por Calcanhotto para Maria Bethânia e lançada como faixa-título do álbum lançado pela cantora baiana em 1996.

Quase na mesma voltagem interpretativa de Bethânia, Ava soube ligar os fios da corrente poética que eletriza Âmbar em gravação calcada no toque do piano de Zé Manoel, distante da atmosfera eletrônica que pauta a maior parte das seis gravações iniciais de Nada ficou no lugar.

Grupo baiano de hip hop, OQuadro também realça as dicotomais cromáticas de Negros (1992), atualizando o tom político de versos como "A música dos brancos é negra / Os dentes dos negros são brancos". OQuatro inclusive faz uso do rap para acentuar o discurso de Negros com uma pegada mais negra.

Em contrapartida, Priscila Tossan – cantora carioca que se impôs como a grande revelação da edição 2018 do programa The Voice Brasil – decepciona ao diluir quase toda a fluência da radiofônica canção Vambora (1998).

Com o já conhecido canto anasalado, Tossan entorta a melodia e brinca com a divisão da balada, porém mais destrói do que desconstrói Vambora sobre bases eletrônicas (do DJ Memê) que somente realçam o resultado infeliz da gravação.

Também natural do Rio de Janeiro (RJ), cidade que acomoda Calcanhotto desde o fim dos anos 1980, Mahmundi tampouco valoriza a verve de Cariocas (1994) em ambiência também eletrônica. A gravação mais parece um remix.

Excessivamente realçada no arranjo, a batida eletrônica é boa, há uma vibe de Marina Lima no ar, mas a letra em si – "coisa mais linda e cheia de graça" por perfilar os cariocas sob a ótica espirituosa de gaúcha então recém-chegada ao Rio – fica em injustificável segundo plano.

Canção que embute na letra o título Nada ficou no lugar (também usado, a propósito, pela cantora Camila de Ávila em EP lançado em novembro com músicas de Calcanhotto), Mentiras (1992) ressurge em ambiência instrumental quase épica que evidencia o canto surpreendentemente polido do pernambucano Johnny Hooker. Pena que esse polimento se dissolva nos versos finais de gravação que persegue registro mais denso.

Por fim, o cantor fluminense Rubel – uma das sensações atuais da cena indie carioca – cai contemporâneo no suingue de Por que você faz cinema? (Adriana Calcanhotto sobre texto em prosa de Joaquim Pedro de Andrade, 1994).

Essa música exemplifica a inquietude experimental da obra de Adriana Calcanhotto, ora desconstruída, com maior ou menor êxito, para – citando verso da composição – "chatear os imbecis" que acreditam ser a música uma arte estática, presa a algum lugar do passado na redoma minúscula de um barzinho.

 

Fonte: G1 Mauro Ferreira.

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