Ao longo dos anos 1980, o carioca Agenor de Miranda Araújo Neto (4 de abril de 1958 – 7 de julho de 1990), o Cazuza, se impôs como um dos maiores pensadores do Brasil à luz de uma música que, partindo do rock e do blues, desaguou em ritmos do país.
Diferentemente de Renato Russo (1960 – 1996), colega mais filosófico e lírico do Exagerado na geração pop que despontou em 1982, Cazuza foi direto ao ponto e abriu feridas em letras geralmente diretas que buscavam um sentido (ainda que vago) de razão na vida, louca vida.
Se Russo por vezes tentou apalpar o sagrado, Cazuza foi profano, crente de que "o banheiro é a igreja de todos os bêbados", como sentenciou em versos de Down em mim (1982). Escritor e professor de literatura que elegeu a obra de Cazuza como tema de mestrado, o carioca Rafael Julião disseca o mundo profano do compositor no recém-lançado livro Segredos de liquidificador (Editora Batel).
Ao analisar as letras de Cazuza à luz de um mundo movido a sexo, drogas e rock'n'roll, Rafael Julião jamais revela lados ocultos da obra do artista, como faz supor o título do livro. Só que, ao mostrar o que já estava escancarado no cancioneiro de Cazuza, Julião reitera a relevância perene de obra que resiste muito bem ao tempo que não para.
Após salpicar dados biográficos e esboçar superficial painel da contracultura que gerou Cazuza, o escritor começa a analisar as letras propriamente ditas do compositor. Algumas nem ganharam melodia e, portanto, nunca viraram música. É o caso de Born to rock'n'roll, usada por Julião para explicitar a identificação de Cazuza com a natureza contestatório do rock, gênero predominante no repertório do grupo Barão Vermelho, veículo pelo qual Cazuza se expressou entre 1982 e 1984 antes de partir para carreira solo iniciada em 1985.
E nadar contra a corrente, a bordo do rock e do blues, implicava falar de sexo, tema entranhado no cancioneiro de Cazuza, como enfatiza Julião. Assunto do capítulo Meio Oxóssi, Meio Oxum, o sexo com homens na obra de Cazuza nem sempre foi explícito, mas o prazer – risco de vida na década da explosão descontrolada da Aids – estava lá em referências e alusões apontadas pelo autor.
Cazuza versou sobre o trinômio sexo, drogas e rock'n'roll com liberalidade, sem moralismo, reverberando a ótica de uma região mais específica da cidade do Rio de Janeiro (RJ), eixo gravitacional do universo particular do artista.
Rafael Julião mostra como, embora universal, a música de Cazuza estava enraizada no quintal carioca do cantor, com letras que expõem imagens de uma cidade em carne viva e alma boêmia.
E foi do Rio, cenário de ilusões perdidas, que Cazuza retratou o Brasil com viés político que apareceu sobretudo no álbum Ideologia (1988), obra-prima da discografia do artista.
Na parte mais original do livro, Rafael Julião defende relações da obra da Cazuza com o universo literário da escritora Clarice Lispector (1920 – 1977), parceira póstuma do compositor na criação de Que o Deus venha (1986), música construída por Roberto Frejat e Cazuza a partir de trecho de Água viva (1973), poema de Clarice.
Mesmo sem os tais segredos de liquidificador prometidos no título que reproduz imagem da letra da balada Codinome Beija-flor (Reinaldo Arias, Cazuza e Ezequiel Neves, 1985), o livro é introdução correta para quem por ventura esteja se deparando com a obra do compositor em 2019.
Algo até provável, pois o fato de as letras de Cazuza serem objetos de análise em livro lançado quase 30 anos após a saída de cena do artista – em 1990, aos breves 32 anos – somente reforça o clichê de que, sim, o poeta não somente está vivo, como já se configura imortal.
Fonte: G1 Mauro Ferreira