Uma cinebiografia é muito mais interessante quando tem o que contar. Deveria ser óbvio. Mas "Simonal", que estreou nesta quinta-feira (8), se destaca justamente por ir além da narrativa sobre a sucessão de glórias de um ídolo - à qual se resume boa parte das obras recentes inspiradas na trajetória de artistas.
O longa mostra como o cantor de "Nem vem que não tem" foi do sucesso absoluto, com uma penca de hits, programa de TV e contratos estratosféricos, aos anos de ostracismo que duraram até o fim de sua vida. O ponto crucial é o episódio de 1971 em que Simonal é acusado de usar agentes do DOPS, o órgão de repressão da ditadura militar no Brasil, para sequestrar e ameaçar um ex-contador.
A repercussão do caso o levou a ser citado como colaborador do regime pela imprensa na época. Com fama de dedo-duro, acabou rejeitado pela indústria e pela opinião pública. Deprimiu-se e passou a ter problemas com álcool. A situação é narrada na trama com panos quentes, mas também com a graça do distanciamento histórico e sob a ótica de temas que estão no centro do debate hoje, quase 50 anos depois.
O roteiro sustenta que o racismo potencializou a reação às atitudes do cantor - no auge, ele já incomodava por nunca disfarçar o orgulho de ter se tornado um homem bem de vida. Somados a isso, os boatos que circularam após o acontecimento de 1971. Até hoje, a imagem de Simonal é envolta na lenda de que ele delatou colegas músicos à ditadura, tese nunca comprovada e que o filme reafirma como "fake news".
A partir de 2000, ano da morte de Simonal, a família e outros artistas procuraram reacender o legado do cantor.
Saíram obras como a biografia "Nem vem que não tem - A vida e o veneno de Wilson Simonal" e o documentário “Ninguém sabe o duro que dei”, de 2009, com o mesmo tom melancólico da trama de ficção, embora menos didático.
Leonardo Domingues, que participou do processo de pós-produção do documentário, dirige a cinebiografia em sua estreia em longas. Tanto quanto as passagens controversas, ele procura destacar o que fez de Simonal um popstar nos anos 60: o domínio absoluto do público, o suingue e um carisma imbatível.
As características são divertidamente resumidas num plano-sequência que mostra o cantor abandonando o palco de seu programa de TV para uma rápida passadinha no bar. Quando volta, o público continua cantando em coro "Meu limão, meu limoeiro".
'Universo expandido'
Fabrício Boliveira incorpora um Simonal nem tão semelhante fisicamente, mas com trejeitos que fogem da caricatura comum nesse tipo de filme. Outros personagens, como o Carlos Imperial de Leandro Hassum, não alcançam o mesmo mérito.
Isis Valverde vive Tereza Pugliesi, mulher do cantor que o acompanhou do início da carreira aos anos de esquecimento. Com Boliveira, ela repete a química de "Faroeste Caboclo" (2013), em cenas que revelam um casamento conflituoso.
Elis Regina (Lilian Menezes), Erasmo Carlos (João Sabiá), Ronaldo Bôscoli (Rafael Sieg) e Luis Carlos Miele (João Velho) também aparecem. Aqui, vale citar o curioso "universo expandido" das cinebiografias musicais brasileiras. Na pele de atores diferentes, todas essas figuras já foram mostradas em títulos anteriores.
Nessa linhagem, aliás, talvez seja o filme de Simonal o mais intrigante. Demorou para sair a versão ficcional de uma das histórias mais emblemáticas da música do país. Mas veio como uma homenagem bonita - e com potencial para gerar ainda mais discussão.
Fonte: G1 Pop e Arte