Em tese, uma reunião de Gilberto Gil com a BaianaSystem em palco ou estúdio tem tudo para se tornar instantaneamente histórica.
Com sete faixas captadas em novembro de 2019, em show que juntou as duas forças rítmicas no set final, o álbum Gil Baiana, ao vivo! – disponível em edição digital a partir desta quinta-feira, 30 de abril – tangencia esse caráter histórico sem promover (toda) a potencial combustão entre a banda e o artista.
Gil e BaianaSystem são distanciados por gerações e por distintos universos musicais, mas unidos pela origem soteropolitana e pela liquidificação de sons do Brasil, da África e de bolsões de ritmos latinos como a Jamaica, país exportador do reggae.
Traço forte de união entre cantor e banda, o apego ao ritmo jamaicano aponta a linha seguida pelos artistas na primeira metade desse disco também editado em LP por clube de adeptos do vinil. O que justifica a abertura do disco com abordagem coletiva do reggae Is this love (Bob Marley, 1978).
O potente sistema de som da banda baiana contribui para amplificar a mensagem de Extra (Gilberto Gil, 1983), reggae da lavra de Gil, cantor, compositor e violonista hábil na operação de máquina de ritmos que põe em ação a miscigenação musical de Brasil banhado por muitas fontes e que produz, ele próprio, límpidas fontes sonoras.
Só que, na gravação mixada e masterizada por Daniel Carvalho, nem sempre dá para sentir a pressão que, talvez, tenha ficado mais nítida no palco. Até porque o fato de Nos barracos da cidade (Gilberto Gil e Liminha, 1985) incorporar Systema Fobica (Russo Passapusso e Roberto Barreto, 2010) como tema incidental resulta insuficiente para produzir a alquimia que alimentou expectativas pela edição do disco.
Na parte conjunta do show (a que é perpetuada no disco), a BaianaSystem se pôs a serviço do repertório de Gil, solista vocal do rock Pessoa nefasta (Gilberto Gil, 1984). E, para se ajustar ao espírito desse cancioneiro, a banda pareceu ter diluído o pancadão habitual do grupo capitaneado por Russo Passapusso (voz), Roberto Barreto (guitarra baiana) e Seko Bass (baixo).
Os três números finais valorizam a edição do álbum Gil Baiana, ao vivo! Destaque do disco, a gravação enérgica de Sarará miolo (Gilberto Gil, 1977) sobressai justamente por promover a real interação entre os dois potentes universos musicais. Sem falar que Sarará miolo eriça o orgulho negro que também pauta a ideologia da BaianaSystem, banda que radiografou o apartheid social de Salvador (BA) no álbum Duas cidades (2016).
Desse disco consagrador, a BaianaSystem recicla Dia da caça (Russo Passapusso, 2016) juntamente com Emoriô (Gilberto Gil e João Donato, 1975), exemplo da latinidade que banha tanto a música de Gil quanto os sons da banda. A abordagem também sobressai em disco que ganha calor à medida em que as sete faixas vão avançando.
No arremate do álbum, Água (Antonio Carlos, Jocafi, Ubiratan Marques, Roberto Barreto e Russo Passapusso, 2019) evoca Água de beber (Antonio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes, 1961) e jorra abundante com baticum que evidencia a matricial fonte africana que nutre BaianaSystem e Gilberto Gil.
Fonte: G1 Mauro Ferreira