31/12/2020

?Soul? e ?Wolfwalkers?, animação rica e animação pobre

As recentes estreias são favoritas ao Oscar, embora separadas por quase 200 milhões de euros de orçamento

Pete Docter e Tomm Moore têm muito pouco em comum. Anglicano nascido em Minnesota de ascendência dinamarquesa, Docter é um introvertido de 52 anos, magro e com orelhas de abano que dirige a Pixar, principal estúdio de animação com CGI (imagens geradas por computador) do mundo, sediada em Emeryville, em pleno Vale do Silício, com um quadro de mais de 1.400 funcionários e 10 longas vencedores do Oscar. Dois deles, Up – Altas Aventuras e Divertida Mente, foram dirigidos pelo próprio Docter, agora à frente de Soul, o último filme da Pixar, estreado no dia de Natal na plataforma Disney+, e sua aposta mais arriscada tanto do ponto de vista estilístico quanto temático. Sua história é pouco habitual no cinema familiar: um professor de música que precisa voltar do mundo das almas para ver realizado o seu sonho como artista de jazz.

Debaixo do rosto gentil, Moore esconde um corpo tatuado dos pés à cabeça e lidera o estúdio Cartoon Saloon (Uma Viagem ao Mundo das Fábulas, A Canção do Oceano), referência na animação tradicional na Europa. Uma empresa com 300 pessoas situada na cidadezinha irlandesa de Kilkenny, que agora apresenta seu quarto longa-metragem, Wolfwalkers, já no Apple TV+, uma aventura celta de meninas, lobisomens, lendas locais e muito da história real da Irlanda. O filme leva a animação tradicional ao limite, incorporando o que foi batizado como “visão do lobo”: uma recriação da realidade virtual num roteiro feito com lápis e papel. Wolfwalkers faz tudo isso com um orçamento de cerca de 1% do que custa uma produção da Pixar: dois milhões de dólares (10,5 milhões de reais) contra 200 milhões (1,05 bilhão de reais). “É Davi contra Golias, embora isso nem sempre seja uma desvantagem”, diz o colombiano Daniel López Muñoz, diretor de arte da Pixar, que em Soul se encarregou do desenho de Joe, o protagonista. “Indiscutivelmente, a Pixar lidera a animação mundial. Mas os estúdios pequenos oferecem certos benefícios, já que você trabalha com mais liberdade. São mais familiares e deixam você experimentar mais coisas”, afirma, sem esconder que este ano gostaria que a animação espanhola Klaus tivesse levado o Oscar ―uma estatueta que mais uma vez foi para a Pixar por Toy Story 4.

Moore é o primeiro que não trocaria por nada a coalizão “das pessoas com vontade”, como ele define o grande grupo de produtores internacionais, de Luxemburgo à China, passando pela França e a Dinamarca, que contribuíram para o sucesso de seus filmes. “Não quero um Jeffrey Katzenberg [ex-presidente da DreamWorks] dando as ordens. Não teremos todo o orçamento de que gostaríamos, mas fazemos o que queremos”, diz Moore. “Fico feliz por promover o conhecimento das próximas gerações, como a da minha neta, e de sua cultura antes que seja regurgitada por uma multinacional. Não tento vender brinquedos de maneira cínica.”

Desenhos com gênero

Os dois estúdios funcionam de modo parecido, com um “conselho de sábios” formado pelos mais veteranos, que opinam sobre todos os projetos. Docter reconhece que, após a saída de John Lasseter, tem a última palavra como presidente-executivo da Pixar, mas prefere não utilizá-la. “Por motivos históricos, os homens brancos têm liderado o estúdio”, entoa como mea culpa, ante uma das críticas mais comuns à Pixar. “Quase não me lembro de mulheres enquanto estudava animação, e minorias ainda menos. Mas isso está mudando.” O Cartoon Saloon tem entre seus fundadores uma mulher, Nora Twomey, que prepara seu terceiro longa como diretora: My Father’s Dragon.

Além do dinheiro, outro dos pontos em comum entre os estúdios são seus finais. A Pixar, por exemplo, coloca em sua lista de agradecimentos os “bebês da produção”. Já o Cartoon Saloon menciona os bichos de estimação da equipe como “assessoramento lupino”. Se a Pixar é conhecida por seu espírito ecológico, com grande variedade de cereais e patinetes disponíveis para os funcionários no estúdio, o sonho de vegano de Moore não é o Oscar, e sim conseguir que o Cartoon Studio tenha um impacto zero no meio ambiente. Até mesmo suas origens não podiam ser mais semelhantes: o mesmo filme, A Ratinha Valente (1982) fez com que o bichinho da animação picasse tanto Moore como Kemp Powers, codiretor de Soul ao lado de Docter. “A animação é um monstro tão grande que é preciso manter o modelo de codiretor da Pixar, embora no nosso caso tenhamos sido mais copilotos, com 50% cada, seguindo o exemplo de John e Ron [Musker e Clements, diretores de clássicos como A Pequena Sereia e Aladdin]”, afirma Moore para explicar seu trabalho com Ross Stewart, de quem é amigo desde os 11 anos.

No fim das contas, como admite o próprio Moore, os pobres não são tão pobres. Wolfwalkers conta com o apoio da Apple TV+. “Não nos sentimos tão em desvantagem com a campanha de marketing que a Apple vem fazendo. É estranho ver aqueles outdoors no meio de Nova York. Tanta visibilidade para nós, que costumávamos sentar à mesa das crianças... Nunca um ano foi ao mesmo tempo tão bom e tão ruim”, diz o realizador. A animação, uma indústria hoje avaliada em 250 bilhões de euros (1,6 trilhão de reais) e considerada a que gera mais lucros em Hollywood, é a que melhor respondeu ao teletrabalho durante a pandemia, mas também teve seus problemas. A estreia de Soul passou a fazer parte do conteúdo do Disney+. Docter não pode deixar de lamentar a falta da estreia numa sala de cinema. “Cada imagem foi feita pensando na telona. Foi difícil aceitar. Mas estou feliz em dar ao mundo inteiro a possibilidade de ver nosso trabalho.” Moore sente falta da camaradagem de trabalhar sob um mesmo teto.

Como diz Docter, “a animação é pura colaboração”. Isso é o que realmente une os dois estúdios: sua paixão pelo meio. “Na Pixar, fazemos os filmes que gostaríamos de assistir como público”, conta Docter sobre uma produção nascida, em parte, de “uma crise pessoal”. E os funcionários do Cartoon Saloon criam os filmes que nunca imaginaram que os amantes da animação poderiam fazer profissionalmente num mundo dominado pelo 3D. “Acho graça de quem diz que a animação 2D está morta. Entre Klaus, Hyrule Warriors: Age of Calamity e alguma outra produção, nunca houve tanta demanda por animadores tradicionais”, diz Moore, pronto para as férias antes que, com toda certeza, ambos os filmes voltem a se encontrar na disputa pelo Oscar.

 

Fonte: El País

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