Ao sair de cena há três anos, Ivone Lara (13 de abril de 1922 – 16 de abril de 2018) deixou obra marcada tanto pelo pioneirismo de ter aberto alas femininas no mundo do samba como pela beleza de melodias urdidas com doçura e delicadeza sublinhadas pela poesia dos versos dos parceiros letristas, curiosamente todos homens.
Compositora produtiva, Ivone deixou também fragmentos de melodias e ideias para músicas que nunca ganharam forma final. As quatro músicas inéditas apresentadas no quarto EP da série Baú da Dona Ivone – disco lançado oficialmente na terça-feira, 13 de abril de 2021, dia do 99º aniversário da artista – são composições geradas a partir desses embriões, desenvolvidos por nomes como Bruno Castro, parceiro mais frequente de Ivone na última fase da vida da compositora carioca.
Nenhuma das quatro músicas tem cacife para se tornar standard do cancioneiro da artista, mas, sim, há nesse lote de inéditas lampejos da inspiração da melodista de fino acabamento, perceptíveis sobretudo em Dois corações abrindo a manhã, samba gravado por Maria Rita para esse disco que abre as comemorações do centenário de nascimento de Ivone.
A música nasceu de contracanto improvisado pela compositora quando dava voz ao sucesso Tendência (Ivone Lara e Jorge Aragão, 1981) em show apresentado em Curitiba (PR) em 2005. Como Bruno Castro tinha gravação caseira dessa apresentação da artista no Paraná, o improviso melódico foi mostrado ao compositor e maestro Rildo Hora, que completou a música, letrada por Bruno. A gravação de Dois corações abrindo a manhã foi feita por Maria Rita com arranjo de Jota Moraes e regência do pianista Nélio Junior.
Dentro do bom nível do lote de inéditas, também merece menção honrosa o samba Já é hora, ouvido no disco por Xande de Pilares. Quem completou a melodia parcial criada por Ivone foi o próprio Bruno Castro. Na sequência, o parceiro mostrou a música para o compositor Serginho Procópio, que escreveu a letra e apresentou a Xande a música gravada pelo cantor com arranjo do pianista Leandro Braga.
Já O espaço pra sonhar – arranjada por Rildo Hora e gravada pelo Fundo de Quintal com as vozes de Sereno, Junior Itaguay e Marcio Alexandre – tem melodia de Ivone letrada pelo recorrente Bruno Castro com versos políticos que conceituam o samba como instrumento de resistência do povo brasileiro.
Completando o lote de inéditas, há 15 anos após o centenário, samba em que Dudu Nobre e Pretinho da Serrinha exaltam os nobres da corte imperial, em especial Vovó Tereza, tia de Ivone e pioneira no culto do jongo no Morro da Serrinha, berço da escola de samba Império Serrano, tradicional agremiação do Carnaval carioca.
Tanto que o samba 15 anos de centenário – composto por Bruno Castro e Zé Luiz do Império a partir de melodia de Ivone e de relatos da dama do samba sobre Vovó Tereza – é acoplado no disco com gravação inédita do jongo Vapor da Paraíba, tema da obra desbravadora da jongueira, nas vozes dos mesmos Dudu e Pretinho.
O primoroso arranjo de Leandro Braga valoriza a faixa, cujo coro – formado pelas vozes de André Lara, Dandara Ventapane, Ronaldo Barcelos e Sarah Si – reverbera a ancestralidade afro-brasileira cultivada na Serrinha.
Além das quatro músicas inéditas, o EP Baú da Dona Ivone abarca registro inédito do samba Nas escritas da vida (Ivone Lara e Bruno Castro, 2009) – feito por Ivone em dueto com Gilberto Gil (cujo canto soa sem viço na faixa) e com arranjo de Maurício Verde – e melancólico samba em tributo a Ivone Lara, O silêncio da passarada, inédito em disco e ouvido na voz da cantora Dandara Mariana.
Enfim, mesmo sem adicionar samba realmente antológico ao repertório autoral de Ivone Lara, o EP – desdobramento do álbum Baú da Dona Ivone, lançado em 2012 com gravações inéditas da compositora e com tiragem dirigida somente a formadores de opinião, escolas e bibliotecas da cidade do Rio de Janeiro (RJ) – cumpre a função de jogar luz sobre a obra desta sambista iluminada cotidianamente pelo poder da criação.
Fonte: G1 Mauro Ferreira