Jão tem lotado os shows da turnê do seu 3º álbum, "Pirata". Um dos artistas pop brasileiros que mais vende ingressos hoje enfrenta agora outro teste, diante de uma plateia que não tem só seus fãs aguerridos: o festival Lollapalooza. Ele leva como trunfo a música "Idiota", em alta nas paradas atuais.
Fazer música pop simples, redondinha, pode ser uma tarefa mais espinhosa do que parece. João Vitor Romania Balbino, 26 anos, reduziu o nome artístico para Jão e lançou três álbuns com um pop emotivo que rendeu contrato com gravadora e fãs dedicados.
Antes de lançar o terceiro, "Pirata", ele apontava ao podcast g1 ouviu um álbum um pouco mais leve, menos sofrido, com influência de 'N Sync na faixa "Coringa".
Ele também contou ao podcast já se "intoxicou" em reuniões buscando uma fórmula fácil de sucesso na música "Louquinho". 'Por que estou cantando essa b*sta?' ele se perguntou. Hoje, tenta usar a lição aprendida: "Para fazer sucesso, funciona quando sou direto e verdadeiro".
Trajetória de Jão
A verdade passa pela pequena América Brasiliense, no interior de SP. Lá, Jãozinho ouvia Marisa Monte e se imaginava no palco. Ele tinha desejos simples (como uma internet a cabo que a cidade não tinha) e lunáticos (como ir para os EUA vender açaí). Acabou indo para a São Paulo estudar publicidade.
Essa figura do cara de fora, que nunca se encaixou direito, está em letras amargas dos primeiros discos ("Me sinto só desde criança, mesmo com gente ao meu redor", ele canta em "Monstros"). Isso ajudou fãs a se identificarem com ele, mas deixou Jão numa espécie de limbo no pop brasileiro.
O som até lembra o de artistas que ganham terreno no meio da monocultura sertaneja das rádios. Mas ele não está nem na turma "good vibes", na nova MPB levinha de Melim e Anavitória, nem entra na dança do "pop pistão", como ele diz, de Pabllo Vittar, Luisa Sonza e outras.
Nesse perfil difícil de encaixar também está a bissexualidade estampada em cenas de romances com homens e mulheres nos clipes. No início da carreira, a conversa sobre o assunto foi truncada.
No fim de 2018, saiu o clipe de "Me beija com raiva", cheio de tensão sexual com um homem. Mas fãs criticaram a falta da cena do beijo citado no título . "Se tem beijo: oooo pink money. Se não tem beijo: ooooo arregão. AAAA me deixa fazer meus clipes caral*o", ele escreveu com raiva no Twitter.
Atritos à parte, há também uma expectativa da indústria musical pelo seu sucesso, como mostra a escolha do cantor para homenagear Cazuza, um dos seus ídolos, no último Prêmio Multishow.
Hoje, Jão está mais calmo, sem o desejo "tóxico" pela fórmula pop nem preocupação em se encaixar. "Estou muito bem em transitar sozinho", diz. Mas quem ouve "Coringa" entende que ele continua em busca da batida pop perfeita.
Ele admite que ser verdadeiro não significa "não pensar no mainstream, não pensar no sucesso e não pensar em rádio". O caminho para o sucesso, no fim das contas, é uma corda bamba na qual ele já tem mais habilidade em caminhar após tombos e êxitos, que ele descreveu ao G1. Leia o resumo abaixo:
G1 - Em 'Coringa' você parece mais leve, assim, menos ácido. É só impressão?
Jão - Não é impressão. É uma boa perspectiva. É um retrato de como me sinto. Calhou que os dois primeiros discos foram mais ácidos. Acho que estou me sentindo mais confortável, mais dono do meu lugar na música, mais confiante, certo do que estou cantando, gravando, produzindo.
G1 - E com essa confiança, conta na prática como foi a criação da música.
Jão - Cantei em cima de um beat que criei. Era mais latino. Quando levei aos produtores, a gente ainda estava num momento de entender a sonoridade e os caminhos do disco. Eu e o Zebu [que já produziu Pabllo Vittar, Luiza Sonza e mais] sempre quisemos fazer uma música com inspiração anos 2000.
É uma era que eu gosto muito, a explosão da música pop do novo milênio, do começo dos anos 2000. A gente sempre tentou encaixar em alguma música. Ele sempre mandava uma música do 'N Sync, e falava: vamos fazer uma assim. Calhou que foi "Coringa".
G1 - Você mesmo faz a base para suas demos?
Jão - Faço. Quando comecei não tinha estrutura nenhuma nem ajuda de ninguém. Estava cansado de ficar procurando beat na internet. Então tive que aprender na marra a produzir minhas coisas.
Foi muito importante para mim. Quando me deparei com um estúdio pela primeira vez, e entrei em contato com músico, com produtor, já estava muito mais familiarizado. Sei muito mais o que quero para a minha música por conta disso.
("Coringa") era um pouco mais para baixo. Eu queria que fosse mais para cima e não sabia como chegar nesse lugar, porque eu não queria que ela fosse uma música de balada, de pista. Mas que fosse uma música pop "up". É sempre um desafio chegar nesse meio termo, sabe?
G1 - O seu som lembra o de outros artistas do "pop good vibes" do Brasil, mas as letras eram mais amargas. "Coringa" não é. Eu queria saber se você consegue se encaixar melhor nesse grupo com essa música. Você vê isso como uma possibilidade dessa música?
Jão - Eu não busco me encaixar nesse grupo. Não busco me encaixar em grupos. Busco fazer o trabalho que reflete melhor o que eu quero dizer e cantar. Sempre me considerei um artista pop, cantei narrativas pop, sonoridades pop. Nuances pop.
Eu não tenho uma gana de me encaixar numa cena ou outra. E não sei se eu estou muito bem dentro ou fora. Acho que é uma mistura de tudo. Eu tenho a minha vertente. E às vezes eu tenho um pouco de sentimento que eu também caminho sozinho.
G1 - Acha que isso te traz um público mais fiel, mas ao mesmo tempo te torna estranho para as rádios?
Jão - Acho que eu sempre soube que seria um desafio. O que eu quis fazer é ser fiel ao que eu queria escrever, e colocar no papel, na produção, na minha música, que eu estivesse sentindo. E calhou que as minhas músicas até então surgiram dessa maneira e eu nunca me impedi de fazer isso.
E quando eu me impedi de fazer isso, quando eu quis me encaixar, quando eu quis me conformar com alguma coisa que eu acho que esperavam de mim, com alguma regra de uma música mais fácil, para mim foi muito frustrante, porque eu me senti completamente... Não gosto da música que eu criei, não acho que me representa. Ficou muito claro para mim.
Mas foi ótimo acontecer porque eu entendi que o meu lugar é ser verdadeiro comigo. Isso não significa não pensar no mainstream, não pensar no sucesso e não pensar em rádio. Inclusive para fazer sucesso, para entrar na rádio, funciona quando eu sou direto e verdadeiro.
Tenho pouco tempo de carreira, ainda não tive uma grande exposição em rádio. Para o tamanho de show que faço, o tipo de fã que tenho, essa galera tão fiel que me acompanha, acho que seria muito diferente se eu tentasse fazer uma música que não fosse verdadeira, ou que fosse menos corajosa.
G1 - É 'Louquinho' o single que você achou que não foi muito...
Jão - Sim, exatamente.
G1 - Você se sentiu desconfortável depois?
Jão - Eu me senti bem desconfortável até bem antes de lançar.
Eu achei que eu tivesse que fazer uma música mais fácil possível para ser a coisa mais aceita possível. E foi ótimo ela ter acontecido, foi espetacular. Foi quando eu ouvi e falei: que me*da é essa? Por que que eu estou cantando essa b*sta? Por quê? Isso não sou eu. Esse clipe não sou eu.
E isso é muito importante para um artista. Ter esses momentos de lucidez em meio a um trabalho ruim. Aí foi isso, foi uma experiência ótima nesse sentido.
G1 - Você conseguiu fazer um contrato em que você tem controle? Ou tem uma conversa grande para decidir as coisas? Como é a relação com a gravadora (Universal) sendo um artista nesse esquema em que você conseguiu as coisas?
Jão - Tenho liberdade completa para fazer o que eu quiser. Isso para mim é muito importante, um pré requisito. Eu era um pouco arrogante para conversar com gravadora. Deixava bem claro que as coisas tinham que ser do meu jeito. E que se fosse para abraçar o projeto seria dessa forma. Então a galera me apoia demais, dá liberdade para escrever o que eu quero, lançar quando eu quero, fazer o clipe da forma que eu quero, têm bastante confiança nas coisas que eu faço.
G1 - Louquinho', então, foi uma coisa que você achou que você deveria fazer?
Jão - Exato. Não só achei sozinho, mas estou numa indústria, né? Converso com outras pessoas. Estou no estúdio com outras pessoas, converso com muita gente, tenho contato com muita gente. Tenho reunião com muitas pessoas. Então uma hora isso te intoxica, sabe? Uma hora você começa a tentar entender: o que as pessoas querem de mim, o que toca na rádio, não sei que lá... Qual é a fórmula. E foi nesse caminho que essa música surgiu.
Mas eu não desgosto dela completamente. Hoje eu fiz as pazes com ela. E eu canto no show. E é um dos momentos mais legais até. Eu aceitei que ela existe, que ela é assim mesmo. E a galera também curte. Hoje eu acho engraçado e foda cantar no show.
G1 - O 'New York Times' fez um perfil do Troye Sivan que diz: 'O cantor de 22 anos esta subindo nas paradas enquanto demonstra que sua orientação sexual faz parte disso e ao mesmo tempo não é a questão'. Você se encaixa nessa geração?
Jão - Acho que sim. Eu nunca defini e nunca foi importante definir o gênero da pessoa com quem eu me relaciono. E eu trato isso com a naturalidade que isso merece ser tratado.
Se você escutar meu trabalho, ver meus clipes, tudo que acontece, sempre foi com muita naturalidade que tratei isso. E meu público entende. Acho que o mundo está entendendo de forma muito mais aberta. É assim que flui minha carreira, minha música, minha arte, minhas letras, e sigo assim.
G1 - Tem uma música sua que eu gosto que é 'Monstros', com o verso 'me sinto só desde criança mesmo com gente a meu redor'. Você tem essa coisa do 'outsider'.
Jão - Um pouco. Eu sou do interior de São Paulo. Nunca me faltou nada, nunca passei fome nem nada do tipo. Mas foi uma infância muito humilde, sem acesso a muita coisa. Uma cidade de 30 mil habitantes. Então eu me apaixonei por música, por arte. Não lembro quem foram as pessoas que me apresentaram, mas eu não tinha muitas referências.
Eu era meio que a criança que gostava de ouvir música, de jogar. Eu brincava bastante na rua com minha irmã, com meus primos, com meus amigos. Mas eu queria alguém para falar sobre música, sobre arte, sobre criatividade. E não era uma coisa muito explorada nos ambientes onde eu vivia.
A música me trouxe muitos momentos de aprendizado mesmo assim, de sentar no meu quarto e ouvir, entender. Eu queria muito cantar e ser aquelas pessoas. Eu ouvia a Marisa Monte, minha mãe tinha um disco dela. E imaginava ela cantando para uma multidão. Eu queria ser aquilo. Queria entender o que era estar em cima do palco e cantar.
G1 - Por ser de uma cidade pequena, talvez conservadora, a questão da orientação sexual no começo te fez pensar duas vezes? Te assustou falar sobre isso por causa dessa origem?
Jão - Acho que não era muito sobre sexualidade. Eu saí de casa muito novo. Isso não era tanto uma questão. Eu já me sentia diferente, eu já sabia que essa não definição talvez fosse algo inerente. Mas acho que era mais questão de encontrar uma galera que falasse sobre música e criatividade.
Eu fantasiava as coisas. Assistia filmes sobre pessoas que saíam da cidade pequena e iam para a cidade grande conquistar as coisas. Isso me seduzia muito. Hoje sou apaixonado pelo interior. Vejo referências dentro de mim de música sertaneja que ouvia muito. E de família, de cidade, sinto muita falta. Eu me identifico muito com o interior, com a inocência, com as coisas que aprendi lá.
Mas naquela época, criança, eu falava: eu preciso ir para onde tem internet. Tinha uma época que a internet era só discada. Não tinha chegado ainda o modem na minha cidade.
Acho que na 8ª série encanei que eu queria ir para os Estados Unidos trabalhar como vendedor de açaí, uma coisa assim. Aí eu e um amigo encontramos um site em que a gente se inscrevia para vender açaí nos Estados Unidos. Uma completa loucura.
Eu comprava muito esses discursos de vencer. Batalhar e vencer na vida. Acho que isso criou uma ambição em mim. Eu não encontrava pessoas que tinham essa mesma ambição, sabe?
G1 - Você conseguiu juntar um público grande que se identifica com isso, talvez por ter sentido o mesmo.
Jão - Acho que sim, a identificação é uma parada que move muito as pessoas. Ainda mais quando alguém traduz isso para você. Ah, eu me sinto assim também.
É quando eu me sinto quando ouço algum artista de quem eu gosto e leio algo que ele fala que eu não conseguiria dizer.
Quando as pessoas compareceram aos meus shows cada vez mais, e eu percebia que estava cantando nas mesmas casas do que pessoas que estavam há muito mais tempo que eu na estrada, que são muito mais famosas do que eu, isso validou muito meu trabalho, me deu confiança de continuar fazendo e acreditando.
G1 - Parece que você está mais em paz.
Jão - Estou, eu não vejo a hora de, quando chega a minha folga, ir para a minha casa no interior. Não faço nada, fico só abraçado com a minha mãe, comendo, e é ótimo.
fonte: Rodrigo Ortega - G1