“Formidável compositor” na avaliação do soberano Antonio Carlos Jobim (1927 – 1994), Carlos Eduardo Lyra Barbosa – o Carlos Lyra, ou Carlinhos, como é chamado pelos amigos – festejou 90 anos em 11 de maio.
Afeto, álbum que será lançado pelo Selo Sesc na sexta-feira, 1º de dezembro, presta justa homenagem ao artista pelo 90º aniversário, como exposto na capa criada por Ale Amaral em explícito tributo à estética visual do discos lançados pela gravadora Elenco nos anos 1960.
Idealizado por Regina Oreiro e gravado no primeiro semestre deste ano de 2023 no estúdio Visom, na cidade do Rio de Janeiro (RJ), o álbum Afeto resulta à altura da obra do compositor, dentro das tradições.
Há no canto e nos arranjos das 14 faixas uma justa reverência à bossa de Lyra, compositor que foi além da bossa nova, como ressaltou o título da parceria do artista com Daltony Nóbrega, composta em 2012. Apresentada há quatro anos como música-título do último álbum de composições inéditas de Lyra, Além da bossa (2019), essa canção é revivida no tributo Afeto na voz de Leila Pinheiro com as cordas do cavaquinho de João Felippe reluzindo no arranjo criado pela própria Leila.
Há, sim, frescor na bossa gerada pela interação do piano e do órgão de Marcos Valle com a guitarra de Lulu Santos, intérpretes de Maria Ninguém (1959), faixa arranjada por Valle, assim como Ciúme (1960), samba cantado com correção por Caetano Veloso.
Contudo, a modernidade atemporal vem mesmo do cancioneiro de Lyra. É deleite ouvir Joyce Moreno gingando com Ivan Lins no balanço do samba Influência do jazz (1962) – com arranjo do mesmo Marcos Valle – e imaginar Djavan evoluindo por salão de gafieira ao cantar o samba Você e eu (Carlos Lyra e Vinicius de Moraes, 1961) com suingue e com piano e arranjo do recorrente Valle.
Marcos Valle divide o posto de arranjador do álbum Afeto com Antonio Adolfo, Gilson Peranzzetta, Jaques Morelenbaum e João Donato (1934 – 2023). Pioneiro da bossa, Donato orquestrou Saudade fez um samba (Carlos Lyra e Ronaldo Bôscoli, 1959) para a voz já rouca de Gilberto Gil em reencontro que abre Afeto. A bossa de Donato sobressai na faixa com a leveza que rege o disco.
É com o piano de Donato que Fernanda Abreu cai bem no Samba do carioca (Carlos Lyra e Vinicius de Moraes) com apropriada citação de Garota sangue bom (Fernanda Abreu e Fausto Fawcett, 1995).
Em atmosfera mais densa, Edu Lobo canta Minha namorada (1964) – standard romântico da parceria de Lyra com o poeta Vinicius de Moraes (1913 – 1980) – em gravação adornada com cordas orquestradas por Gilson Peranzzetta, arranjador da faixa.
Peranzzetta também arranjou Canção que morre no ar (Carlos Lyra e Ronaldo Bôscoli, 1960), interpretada por Ney Matogrosso – com o canto mais grave do que o habitual – em gravação que embute passagem instrumental de clima jazzy em que sobressai o piano de Peranzzetta.
Já Jaques Morelenbaum fez o arranjo de E era Copacabana (2006), samba-canção cheio de bossa, apresentado há 17 anos por Dori Caymmi e Joyce Moreno, parceira de Lyra no tema (relativamente) recente ouvido no álbum Afeto no canto preciso de Mônica Salmaso, escalação tão certeira quanto surpreendente pelo fato de a voz de Salmaso ser quase a antítese da leveza da bossa nova.
Bem mais antiga, Quando chegares (1960) – primeira música de Lyra, feita em 1954 quando o compositor debutante tinha 21 anos – ressurge refinada pelo toque do piano de Antonio Adolfo (arranjador da faixa) e pela voz aconchegante de Wanda Sá.
Adolfo também arranjou Sabe você (Carlos Lyra e Vinicius de Moraes, 1964), canção que harmoniza as vozes de Paula Morelenebaum e Roberto Menescal, contemporâneo de Lyra e, como ele, um dos poucos remanescentes da geração de compositores e músicos que, há 65 anos, viram a bossa nova se erguer no mar do Rio de Janeiro (RJ) em 1958 após ser maturada há anos por João Gilberto (1931 – 2019), intérprete original de Lobo bobo (Carlos Lyra e Ronaldo Bôscoli, 1959), cuja malícia é marotamente saboreada em Afeto por Mart'nália com arranjo de João Donato.
Recorrente no disco como arranjador e como intérprete, Marcos Valle divide com Patrícia Alví os versos de O negócio é amar (1984), parceria póstuma de Lyra com Dolores Duran (1930 – 1959).
Enfim, tudo flui em Afeto porque nenhum arranjador ou intérprete caiu na tentação de modernizar o que já nasceu e se conserva moderno pela própria natureza da bossa nova.
Fonte: G1