Por ser o segundo documentário póstumo sobre o cantor, compositor e músico carioca Luiz Carlos dos Santos (7 de janeiro de 1951 – 4 de agosto de 2017) apresentado em espaço de quatro anos, o filme Luiz Melodia – No coração do Brasil corria o risco de soar redundante.
No entanto, o documentário da diretora Alessandra Dorgan se desvia do trilho da obviedade e até se engrandece em relação ao antecessor Todas as melodias (2020), ótimo filme dirigido e roteirizado por Marcos Abujamra.
É que, em vez de seguir a receita dos depoimentos elogiosos + imagens de arquivo + números musicais inéditos, o roteiro de Alessandra Dorgan, Patricia Palumbo e Joaquim Castro – escrito com a colaboração de Raul Perez – dá voz somente a Luiz Melodia, artista tão genial quanto controvertido.
Estão lá imagens valiosas, como a de Gal Costa (1945 – 2022) cantando Pérola negra (1971) no show Gal a todo vapor (1971 / 1972) na captação feita pelo cineasta Leon Hirszman (1937 – 1987), mas quem fala sobre Luiz Melodia é somente ele mesmo, na primeira pessoa. E isso faz toda a diferença. A favor do filme.
Entre a exposição de fotos inéditas do acervo pessoal de Jane Reis (viúva do artista) e a exibição na íntegra de números musicais como Ébano (1975), visto em eliminatória do festival Abertura (TV Globo, 1975) no Theatro Municipal de São Paulo, ouve-se a história de altos e baixos de Luiz Melodia na voz aveludada do próprio Luiz Melodia.
E o fato é que, ao longo de uma hora e 15 minutos, o documentário disseca o coração indomado, rebelde e libertário deste artista que, embora criado no Morro de São Carlos, no Estácio, berço de bambas seminais, se recusou a vestir a pele de sambista e a ser (somente) uma voz do morro, ainda que, no exercício da liberdade, tenha feito no álbum Mico de circo (1978) gravação lapidar, em clima de gafieira, de A voz do morro (1955), um dos emblemas da obra do antecessor Zé Ketti (1921 – 1999), também tema de documentário exibido na mesma 16ª edição do festival In-Edit Brasil que apresenta o filme sobre Melodia na programação agendada de 12 a 23 de junho na cidade de São Paulo (SP).
“Se liga no que eu tô falando: é bom se soltar! Enquanto existe música dentro de cada um, existe liberdade”, sentencia Melodia logo na primeira cena do filme, quando incita a plateia de um show a dançar.
Sem didatismo, o roteiro segue cronologia que permite ao espectador menos informado acompanhar a descoberta de Luiz Melodia no morro por Waly Salomão (1943 – 2003), a revelação do compositor em 1971 na voz de Gal Costa, a ascensão entre 1972 (ano em que Maria Bethânia lançou o samba Estácio Holly, Estácio) e 1973 (ano do antológico primeiro álbum do cantor, Pérola negra), o auge com Juventude transviada (1975) sendo massificada na trilha de novela blockbuster da TV Globo, o declínio (comercial) nos anos 1980 e a ressurreição mercadológica na década de 1990 a partir da abordagem da canção Codinome beija-flor (Reinaldo Arias, Cazuza e Ezequiel Neves, 1985) para novela exibida em 1991.
Fica claro que Luiz Melodia foi artista desafinado com a política predatória da indústria da música – o que gerou tantos baixos na carreira e também o rótulo de “maldito”, posto tanto em Melodia como em Jards Macalé e em Sérgio Sampaio (1947 – 1994), gênios também indomados pelos quais o Negro gato expressa profunda admiração no filme.
“Se você marca touca, eles te engolem e fazem um bolinho. Se eu me envolvo com esse tipo de coisa, eu me magoo, entro em depressão e paro com a música”, ressalta Melodia, que saiu da gravadora Philips batendo a porta, após o álbum Pérola negra, porque se recusou a fazer um segundo disco voltado para o samba, como a direção artística da companhia queria.
“Minhas atitudes eram rebeldes. Rebeldia é parte da vida”, justifica Melodia, antes de o documentário exibir sequência clipada de cena com trechos de entrevistas em que o assunto em pauta era a fama de artista “difícil” alimentada pela mídia em torno de Melodia.
É justamente por escapar da louvação pura e simples que, entre expressivos números musicais como o canto de Presente cotidiano (1973) por Gal Costa e o dueto de Melodia com Elza Soares (1930 – 2022) em registro de Fadas (1978) em ritmo de tango, o filme Luiz Melodia – No coração do Brasil engrandece o artista, sobretudo no arremate espiritualista em que fica evidente a infinitude tanto das canções quanto da alma indomada de Luiz Carlos dos Santos, dono de coração cheio de música e liberdade.
Fonte: G1