Quando terminou de cantar Força estranha (1978), música que Caetano Veloso deu para Roberto Carlos e que Gal Costa (1945 – 2022) tomou para ela desde que começou a interpretar a canção em 1979, Xande de Pilares pediu que as luzes da plateia da casa Qualistage fossem acesas.
O cantor queria ter com clareza a visão do público que se levantara para aplaudir Xande de pé após a abordagem visceral de Força estranha, feita somente com a voz, o toque do violão de Marcelo Minius e a emoção do intérprete em um dos pontos mais altos da estreia carioca do show Xande canta Caetano na noite de ontem, 26 de julho.
No íntimo, Xande de Pilares sabia que aquele era um momento de triunfo fora do universo das rodas de samba que o legitimaram já nos anos 1990, década em que o artista carioca foi projetado como vocalista e principal compositor do grupo Revelação, no qual permaneceu até 2014.
No show em que canta músicas de Caetano Veloso com estética fiel ao do álbum homônimo lançado em agosto de 2023, Xande vai além do repertório do aclamado disco, adicionando ao roteiro músicas como Queixa (1982), cantada como se o artista estivesse no palco ou nas ruas da Bahia preta, sob a proteção de todos os santos.
A propósito, no bis, quando se permitiu cantar o próprio repertório, Xande reviveu Bahia de todos os deuses (Bala e Manuel Rosa), samba-enredo com o qual a agremiação Acadêmicos do Salgueiro – berço de Xande no mundo do samba – se (con)sagrou campeã no Carnaval carioca de 1969, ano em que o cantor veio ao mundo, no dia de Natal, após ter sido embalado na barriga da mãe pelo samba-enredo campeão, amplificado dentro e fora da avenida pela voz milenar de Elza Soares (1930 – 2022).
Na noite de ontem, no palco-avenida da casa Qualistage, a (con)sagração foi do próprio Xande de Pilares, que cantou Caetano Veloso com a voz de uma pessoa vitoriosa que chega à apoteose após dez anos de carreira solo.
Ciente de que a maior parte do público que forma opinião estava ali somente pela conexão do sambista com um bastião da MPB entronizada no Brasil pelas elites culturais a partir dos anos 1960, mas também ciente de que já lotava o Qualistage (muito) antes da associação com o compositor baiano, Xande cantou Caetano com orgulho do próprio valor e da própria história que construíra antes do álbum de 2023.
Xande expôs esse orgulho, botando a família e os amigos sentados nas primeiras mesas da casa, improvisando no bis sambas como Conselho (Adilson Bispo e Zé Roberto, 1986) para celebrar a presença do compositor Zé Roberto na plateia, saudando o Salgueiro e, sim, cantando sucessos da própria lavra, como Trilha do amor (Xande de Pilares, André Renato e Gilson Bernini, 2012) e Tá escrito (Xande de Pilares, Carlinhos Madureira e Gilson Bernini, 2009), que já ganharam a voz de Caetano Veloso em discos e/ou shows.
Antes do longo e festivo bis, onde reapareceu o Xande mais descontraído das rodas de samba, o Xande idolatrado pelo grande público, o cantor deu voz a 17 músicas de Caetano Veloso com o toque de big band – sob direção musical de Pretinho da Serrinha – e com a alegria de estar oferecendo pérolas aos povos que vem lotando as apresentações do show Xande canta Caetano desde que a turnê nacional entrou em cena em junho, na Bahia, terra natal de Caetano e musa inspiradora de arranjos como o de Alegria alegria (1969), que marchou majestosa na cadência do ijexá.
Aberto com citação de Menino do Rio (1979), feita para demarcar o território do bamba carioca, o roteiro seguiu com Muito romântico (1977) – com Xande no toque do cavaquinho – e continuou com Luz do sol (1982), música que iluminou a ausência tão presente de Gal Costa, saudada por Xande e também evocada silenciosamente, números depois, com o canto altivo de O amor (Caetano Veloso e Ney Costa Santos sobre poema de Vladimir Maiakovski, 1981).
A primeira novidade além do disco veio com Reconvexo (1989). Foi quando as percussões de Didão (surdo), Larissa Umaytá (pandeiro) e Quininho (tantã) revolveram o som dos terreiros para pôr na roda esse samba feito à moda do Recôncavo para a voz de Maria Bethânia, intérprete original de Reconvexo e do samba-choro Diamante verdadeiro (1978), veículo para a exposição da brilhante cama sonora armada pela banda, com destaque para o sopro da flauta de Eduardo Coelho.
Se Trilhos urbanos (1979) deslizou com fluência, reproduzindo o arranjo do disco que embute citação de Retirantes (Dorival Caymmi, 1976) e evocação do batuque do maculelê, Trem das cores (1982) pareceu transitar fora dos trilhos no único momento opaco do show, cujo brilho jamais foi empanado por eventuais tropeços do cantor nas letras de algumas músicas de Caetano.
Sob a direção imperceptível (e talvez por isso mesmo eficiente) de Regina Casé, Xande também legitimou Desde que o samba é samba (1993), tentou exalar a sensualidade de Tigresa (1977), reviveu Qualquer coisa (1975) – em número que evidenciou o bandolim de Juan Anjos – e esboçou clima de festa com o link de Odara (1977) com Gente (1977) no fecho do show.
Contudo, a festa se fez mesmo no bis, quando o samba-reggae A luz de Tieta (1996) apareceu entre sambas-enredo do Salgueiro, escola do coração de Xande, pessoa vitoriosa desde que o samba é samba, muito antes de soltar a voz para cantar Caetano Veloso em disco e em show que já segue o trilho do sucesso do álbum de 2023.
Fonte: G1