É com riffs distorcidos de guitarra, batidas em foco e suspiros ofegantes que Tyler the Creator inicia "Noid", o hit paranoico de "Chromakopia", seu álbum lançado no fim de outubro. Vibrante, a canção traz um rap alucinógeno com traços de zamrock, o rock zambiano surgido na década de 1970.
Com versos que expõem um Tyler inseguro diante da fama, "Noid” sampleia "Nizaka Panga Ngozi", música da banda Ngozi Family. "Quando vier à minha casa, mantenha o respeito (paranoico) / porque eu não quero fofocas, fofocas/ fofocas trazem problemas", canta o vozeirão agudo de Paul Ngozi no trecho do sample — falado em chewa, um dos idiomas da Zâmbia.
Compartilhando semelhanças com o hard rock, blues, soul e funk estadunidense, o zamrock é um subgênero de rock que mescla ritmos africanos com ares libertários de psicodelia. A partir de rasgos de guitarra elétrica e kalindula (instrumento que lembra o baixo), o estilo surgiu no embalo decolonial da Zâmbia recém-independente. Nos anos 1980, caiu em crise devido à epidemia de Aids. E agora, ressurge nas paradas de maior sucesso mundial.
Além de "Noid", o zamrock está presente em "Sirens", de Travis Scott, outro rapper que gosta bastante de trabalhar com rock e psicodelia. A música, que também virou hit quando lançada (2023), faz sample de "Nsunka Lwendo", da banda zambiana Amanaz.
Assim como Tyler e Travis, outros artistas do mainstream têm se inspirado em sons africanos e, com eles, emplacado hits globais. É uma onda que vem crescendo desde 2022, quando veio o megassucesso “Calm Down”, parceria entre o rapper nigeriano Rema e a popstar americana Selena Gomez.
Nem tudo é afrobeats
"Calm Down" é um afrobeats, música que mistura vários gêneros — desde populares, como R&B e dancehall, até vertentes mais nichadas como highlife, fuji e afrobeat.
Aqui vale frisar que afrobeat e afrobeats são coisas diferentes. A palavra sem o "s" é um gênero surgido nos anos 1960, com uma pegada que lembra jazz e música iourbá. É tocado em orquestras, e teve Fela Kuti como pioneiro. Já o termo com "s" veio bem depois, nos anos 2000, para se referir de forma genérica ao pop africano.
Atualmente, quem está bombando nas paradas é o estilo com "s": o afrobeats. Em 2023, ele foi tocado por 223 milhões de horas só no Spotify. A plataforma também notou um aumento de músicas desse tipo em seu acervo: desde 2017, houve um aumento de 550%.
Uma das vozes mais famosas do estilo é a da Ayra Starr, que canta os hits "Santa", "Bloody Samaritan" e "Rush". Nas letras, a nigeriana costuma misturar inglês, iorubá e naijá. Neste ano, ela foi uma das indicadas ao primeiro troféu Grammy de música africana (cuja vencedora foi Tyla).
"Se você me der uma batida de funk [americana], encontrarei um afrobeats nela e te darei um afropunk", afirmou Ayra à revista americana "Elle" em maio. "Tenho muito orgulho de ser uma artista afrobeats."
Mas nem todo mundo sente isso. Mesmo sendo popularmente conhecido como um cantor da safra afrobeats, o nigeriano Burna Boy não gosta dessa associação. Em 2018, ele chegou a dizer que prefere termos como "afrofusion" e “afropop”, e deu a entender que falar "afrobeats" seria um desrespeito aos músicos do afrobeat (o gênero escrito no singular). Cinco anos depois, ele ainda afirmou que “90% daquilo que é chamado de afrobeats” são músicas “sem substância”. O fato é que o termo virou recorrente no vocabulário da produção pop.
No Brasil, quem tem curtido o afrobeats é Ludmilla. Ela levou o som para "Socadona" e "Whine" —essa em parceria com o nigeriano Asake. Além da cantora, o EP "AfroHits" (cujo lançamento é dia 14 de dezembro) também promete surfar no estilo, trazendo um gostinho nacional.
"É um disco completamente baseado em um ritmo que tem contagiado a Europa. Mas ele é voltado ao mercado brasileiro, então mistura essas essências do afrobeats com funk e trap", diz ao g1 Jefferson Junior, sócio da produtora Mousik. Entre os artistas do disco, estão as funkeiras Rebecca e Bibi Babydoll. "O cenário pop precisava de renovação."
Ele também diz que o boom do afrobeats tem influenciado gêneros tipicamente afrobrasileiros como funk, trap e samba. "Qualquer beat feito com inspiração na música africana é um afrobeats."
É justamente desse caráter genérico do conceito que surgem algumas discussões. Tivemos um exemplo em setembro, quando a sul-africana Tyla levou o troféu VMA de Melhor Afrobeats. Ao recebê-lo, ela deu uma alfinetada na premiação.
“Sei que existe uma tendência de enquadrar todos os artistas africanos sob o rótulo de ‘afrobeats’. Mas ainda que o afrobeats tenha dominado acelerado as coisas e aberto tantas portas para nós, a música africana é muito diversa”, disse a cantora.
Diáspora musical
Dona do hit “Water” e vencedora do primeiro Grammy de música africana, Tyla canta amapiano. Esse é outro gênero da África que vem crescendo no mainstream.
O amapiano é um gênero sul-africano surgido nos anos 2010, com influências do kwaito, house music e soul. Seus arranjos costumam trazer piano, baixo, sintetizadores e, sobretudo, o chamado tambor de fenda. As músicas têm uma atmosfera brisada, são dançantes e sexy.
Além de explorar o zamrock, Travis Scott também trabalhou com o amapiano recentemente. No remix de “Water”, ele canta ao lado de Tyla, adicionando um trecho de rap melódico no hit sedutor.
Com 855 milhões de streams no Spotify em 2024, o gênero também aparece em "Tshwala Bam", feat entre TitoM, S.N.E, Yuppe e Burna Boy. É também um estilo que vem inspirando a brasileira Larissa Luz e conduziu seu show no festival Afropunk, que aconteceu neste fim de semana em Salvador.
"O amapiano está com bastante destaque global", diz o produtor Rafael Tudesco, da Warner Music. "Teve um aumento de hits pop inspirados em gêneros africanos, sim. Muito disso é por conta da cultura que esses ritmos têm. O modo de se vestir, danças, gírias..."
Com a crescente influência do TikTok na indústria musical, a dança passou a ser um elemento importante para a receita do hit mainstream. Daí, coreografias africanas que viralizam na rede acabam ajudando a impulsionar alguns gêneros do continente.
"A globalização, a popularização da internet, o acesso às redes... Isso fez as pessoas terem acesso a cenas locais de diversos cantos do mundo. E a música pop bebe muito de cenas locais, sempre está em busca do novo som", acrescenta Rafael.
Quando falamos em mercado musical, não há dúvidas de que a África foi (e ainda é) preterida para investimentos, acordos e parcerias. Rafael afirma, no entanto, que o mercado fonográfico africano tem vivido uma expansão. Ele lembra, por exemplo, que a própria Warner lançou neste ano um escritório voltado aos países francófonos do continente.
O setor de streaming também deve crescer na região. Uma pesquisa da Statista mostra que o streaming musical na África deve crescer em R$ 513 milhões até 2027.
"As gravadoras precisam investir mais no continente africano para que cada vez mais a gente tenha artistas e selos da região. É preciso fazer mais isso em vez de simplesmente injetar [a estética de gêneros locais] no mainstream [do Ocidente] tentando fabricar algo que não é real", diz Rafael.
Fonte: G1